terça-feira, 25 de março de 2008

quinta-feira, 13 de março de 2008

Por falar em cultura, Artaud em 7 etapas!



O teatro e a cultura


Antonin Artaud

Jamais, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e em cultura. Há um estranho paralelismo entre essa destruição generalizada da vida, que encontra-se na base da desmoralização atual, e a preocupação com uma cultura que jamais coincidiu com a vida, e que é feita para governar sobre a vida.
Antes de retornar à cultura, observo que o mundo tem fome, e que ele não se preocupa com a cultura; e que é apenas de maneira artificial que se quer dirigir para a cultura pensamentos que estão voltados unicamente para a fome.
O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência jamais salvou um homem de ter fome e da preocupação de viver melhor, e sim extrair disso que se chama de cultura idéias cuja força viva seja idêntica à da fome.
Nós temos necessidade sobretudo de viver e de acreditar naquilo que nos faz viver e que alguma coisa nos faz viver ¤ e aquilo que sai do misterioso interior de nós mesmos não deve retornar perpetuamente sobre nós mesmos, em uma preocupação grosseiramente digestiva.
Quero dizer que se para todos nós é importante comer, e já, nos é ainda mais importante não desperdiçar nesta única preocupação imediata de comer nossa simples força de ter fome.
Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são a representação dessas coisas.
Certamente não são sistemas de pensamento que nos faltam; o seu número e as suas contradições caracterizam nossa velha cultura européia e francesa: mas quando é que a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?
Não diria que os sistemas filosóficos são algo que se possa aplicar direta e imediatamente; mas das duas, uma:
Ou esses sistemas estão em nós e somos impregnados por eles a ponto de viver deles, e neste caso o que importam os livros? ou nós não somos impregnados por eles, e neste caso eles não merecem nos fazer viver; e de qualquer forma, que importa seu desaparecimento?



É necessário insistir sobre esta idéia da cultura em ação e que se torna em nós como um novo órgão, uma espécie de segunda respiração: e a civilização é a cultura que se impõe e que rege até mesmo nossas ações mais sutis, é o espírito que se encontra nas coisas; e é de maneira artificial que se separa a civilização da cultura, e que há duas palavras para significar uma única e idêntica ação.
Julgamos um civilizado pelo modo como ele se comporta, e ele pensa da maneira como se comporta; mas já sobre a palavra civilizado existe uma confusão; para todo o mundo, um civilizado culto é um homem esclarecido quanto aos sistemas, e que pensa através de sistemas, de formas, de signos, de representações.
É um monstro em quem se desenvolveu até o absurdo essa faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos, em vez de identificar nossos atos com nossos pensamentos.
Se falta amplitude à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma constante magia, é porque gostamos de observar nossos atos e de perder-nos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impelidos por eles.
E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é essa infecção do humano que nos estraga certas idéias que deveriam permanecer divinas; pois, longe de acreditar no sobrenatural e no divino inventados pelo homem, creio que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.
Todas as nossas idéias sobre a vida devem ser modificadas, numa época em que nada mais adere à vida. E essa penosa cisão é motivo para que as coisas se vinguem, e a poesia que não está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas ressurge de repente pelo lado mau das coisas; e jamais se viu tantos crimes, cuja gratuita estranheza só pode ser explicada por nossa impotência em possuir a vida.
Se o teatro existe para permitir que nossos recalques tomem vida, uma espécie de atroz poesia se exprime através de atos bizarros, onde as alterações do fato de viver demonstram que a intensidade da vida permanece intacta, e que bastaria melhor dirigi-la.


Porém, por mais que queiramos a magia, no fundo temos medo de uma vida que se desenvolvesse toda sob o signo da verdadeira magia.
E é assim que nossa ausência enraizada de cultura espanta-se com certas grandiosas anomalias e que, por exemplo, em uma ilha sem nenhum contato com a civilização atual, a simples passagem de um navio, somente com pessoas sadias, pode provocar o aparecimento de doenças desconhecidas nessa ilha, e que são uma especialidade de nossos países: zona, influenza, gripe, reumatismos, sinusite, polinevrite, etc., etc.
Do mesmo modo, se achamos que os negros cheiram mal, ignoramos que para tudo aquilo que não é Europa somos nós, os brancos, que cheiramos mal. E eu diria mesmo que exalamos um odor branco, branco assim como se pode falar de um "mal branco".
Como o ferro aquecido ao branco, pode-se dizer que tudo o que é excessivo é branco; e para um asiático a cor branca tornou-se a insígnia da mais extrema decomposição.
Dito isto, podemos começar a traçar uma idéia da cultura, uma idéia que é antes de tudo um protesto.
Protesto contra o estreitamento insensato que é imposto à idéia de cultura ao se reduzi-la a uma espécie de inconcebível Panteão; o que resulta em uma idolatria da cultura, da mesma maneira que as religiões idólatras colocam deuses em seu Panteão.
Protesto contra a idéia separada que se faz da cultura, como se existisse, de um lado, a cultura, e de outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio requintado de compreender e de exercer a vida
.


Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros, existem forças: podem nos roubar durante algum tempo a faculdade de reencontrar essas forças, mas não podem suprimir a sua energia. E é bom que muitas das grandes facilidades desapareçam e que certas formas caiam no esquecimento; assim a cultura sem espaço nem tempo contida em nossa capacidade nervosa ressurgirá com uma energia amplificada. E é justo que de tempos em tempos se produzam cataclismas que nos incitem a retornar à natureza, ou seja, a reencontrar a vida. O velho totemismo dos animais, das pedras, dos objetos utilizados para aterrorizar, das vestimentas bestialmente impregnadas, em uma palavra tudo o que serve para captar, dirigir e desviar as forças, é para nós uma coisa morta, da qual sabemos apenas tirar um proveito artístico e estático, um proveito de fruidor e não um proveito de ator.
Ora, o totemismo é ator porque se move, e é feito para atores; e toda verdadeira cultura apoia-se sobre os meios bárbaros e primitivos do totemismo, cuja vida selvagem, ou seja, inteiramente espontânea, quero adorar.
O que nos fez perder a cultura foi nossa idéia ocidental da arte e o proveito que dela tiramos. Arte e cultura não podem andar juntas, contrariamente ao uso que universalmente se tem feito delas!


A verdadeira cultura age por sua exaltação e por sua força, e o ideal europeu da arte visa lançar o espírito em uma atitude separada da força e que assiste à sua exaltação. É uma idéia preguiçosa, inútil, e que engendra, a curto prazo, a morte. Se as múltiplas voltas da Serpente Quetzalcoatl são harmoniosas, é porque elas exprimem o equilíbrio e as curvas de uma força adormecida; e a intensidade das formas está lá unicamente para seduzir e captar a mesma força que, em música, é despertada por um dilacerante teclado.
Os deuses que dormem nos Museus: o deus do Fogo, com seu incensório que recorda o tripé da Inquisição; Tlaloc, um dos múltiplos deuses das águas, com sua muralha de granito verde; a Deusa Mãe das águas, a Deusa Mãe das Flores; a expressão imutável e que soa, debaixo de várias camadas de água, da Deusa com o vestido de jade verde; a expressão arrebatada e bem-aventurada, o rosto crepitando de aromas, onde os átomos de sol dançam em círculos, da Deusa Mãe das Flores; essa espécie de servidão necessária de um mundo onde a pedra se anima porque foi golpeada da maneira correta, o mundo dos civilizados orgânicos, aqueles cujos órgãos vitais também saem de seu repouso, esse mundo humano penetra em nós, participa da dança dos deuses, sem retornar nem olhar para trás, sob pena de se tornar, como nós mesmos, pulverizadas estátuas de sal.
No México, uma vez que se trata do México, não existe arte e as coisas servem. E o mundo está em perpétua exaltação.


À nossa idéia inerte e desinteressada da arte uma cultura autêntica opõe uma idéia mágica e violentamente egoísta, ou seja, interessada. Pois os mexicanos captam o Manas, as forças que dormem em todas as formas, e que não podem surgir de uma contemplação das formas em si mesmas, mas somente de uma identificação mágica com essas formas. E os velhos Tótens estão lá para acelerar a comunicação.
Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos fixos e conscientes, é duro despertar e olhar as coisas como em um sonho, com olhos que não sabem mais para que servem, e cujo olhar está voltado para dentro.
É assim que nasce a estranha idéia de uma ação desinteressada, mas que é ação de qualquer maneira, e mais violenta por aproximar-se da tentação de repouso.
Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte surge a partir do momento em que o escultor que modela crê liberar uma espécie de sombra cuja existência atormentará seu repouso.
Como toda cultura mágica que os hieróglifos apropriados estabelecem, o verdadeiro teatro também tem suas sombras; e, de todas as linguagens e de todas as artes, ele é o único que ainda possui sombras que romperam com suas limitações. E podemos dizer que, desde a sua origem, elas não suportaram limitações.
Nossa idéia petrificada do teatro junta-se à nossa idéia petrificada de uma cultura sem sombras, onde, para qualquer lado que se volte nosso espírito, não encontramos senão o vazio, quando de fato o espaço está pleno.
Mas o verdadeiro teatro, porque se move e porque se serve de instrumentos vivos, continua a agitar as sombras onde a vida jamais deixou de existir. O ator que não repete o mesmo gesto duas vezes, mas que faz gestos, se move, e certamente brutaliza as formas, mas por trás dessas formas, e através da sua destruição, encontra aquilo que sobrevive às formas e produz a sua continuação.

O teatro que não está em nada mas que se serve de todas as linguagens: gestos, sons, palavras, fogo, gritos, encontra-se exatamente no ponto em que o espírito tem necessidade de uma linguagem para produzir suas manifestações.

E a fixação do teatro em uma linguagem: palavras escritas, música, luzes, ruídos, indica sua perdição a curto prazo, sendo que a escolha de uma linguagem demonstra o gosto que se tem pelas facilidades dessa linguagem; e o ressecamento da linguagem acompanha a sua limitação.

Para o teatro, como para a cultura, a questão continua sendo nomear e dirigir as sombras: e o teatro, que não se fixa na linguagem nem nas formas, destrói assim as falsas sombras, e ao mesmo tempo prepara o caminho para um outro nascimento de sombras, em volta das quais se incorpora o verdadeiro espetáculo da vida.

Quebrar a linguagem para tocar a vida é fazer ou refazer o teatro; e o importante é não achar que esse ato deve permanecer sagrado, ou seja, reservado. O importante é acreditar que todos podem fazê-lo, e que para tanto é necessária uma preparação.

Isso leva a rejeitar as limitações habituais do homem e os poderes do homem, e a tornar infinitas as fronteiras daquilo que denomina-se a realidade.

É necessário acreditar em um sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se mestre daquilo que ainda não existe, e o faz nascer. E tudo aquilo que não nasceu ainda pode nascer, desde que não nos contentemos em continuar sendo simples órgãos registradores.

Da mesma maneira, quando pronunciamos a palavra vida, é preciso entender que não se trata da vida reconhecida a partir do exterior dos fatos, mas dessa espécie de frágil e fugidio centro em que as formas não tocam. E se ainda existe algo de infernal e de verdadeiramente maldito nestes tempos, é esse demorar-se artisticamente sobre as formas, em vez de ser como os supliciados que são incendiados e fazem sinais de dentro das suas fogueiras.



In Antonin Artaud, Le théâtre et son double, Paris, éditions Gallimard, 1964, págs. 9-18. Tradução de Roberto Mallet.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Afinal o que é cultura?


"Educar uma criança não é como encher um vaso, mas como acender uma fogueira."
(Montaigne)

Quer continuar?

Acesse:

http://pontocinza.blogspot.com/2008/01/cultura-e-morte-nova-srie-9.html

terça-feira, 4 de março de 2008

Bravo!Bravíssimo!

“Muitos de nós nos tornamos atores porque queremos fazer sucesso ou precisamos dos aplausos do público. Mas se quisermos receber aplausos, temos que desistir dessa idéia. Isso é incrivelmente difícil, já que o aplauso faz parte do querer ser ator”. (Yoshi Oida)

A idéia de que um ator, para ser um profissional bem sucedido, precisa ter notoriedade faz com que percamos boa parte do nosso tempo de profissão. Desde cedo somos pressionados a buscar meios de mídia que nos tornem uma pessoa conhecida. É claro que sair em jornais ou revistas facilita a vida do profissional de qualquer área. E direcionar a produção para ser um grupo ou ator conhecido é uma questão de sobrevivência em um mercado que é injusto, em um país com leis inexpressivas de política cultural.
Porém, há uma outra pressão sofrida por parte de quem decide fazer teatro que, ao meu ver, é bem mais cruel do que esta que atinge também outras profissões. O que fazer quando, além do mercado, a sociedade nos cobra o reconhecimento da mídia? Logo na escolha da profissão a maior luta pode ser com a família. Depois disso resolvido ou esquecido, temos um batalhão formado por gerentes de banco, donos de comércio, empresários ou até os que elegemos como esposa ou marido. E se escolhemos trabalhar pelo interior muito mais do que nas capitais, isso vira sinônimo de falta de inteligência.
Conheço grupos que existem há décadas realizando trabalhos cada vez mais qualificados, fazendo da arte sua sobrevivência e que nunca estiveram sobre o foco da grande mídia. E isso não é sucesso profissional?
Esta cobrança social faz com que inverta o objetivo de quem sonhou um dia em simplesmente trabalhar com arte, fazendo com que a fama se torne algo mais importante na profissão do que o estudo e o desenvolvimento de um trabalho sério e conseqüente.
Esta inversão fere diretamente a ética do trabalho do ator.
E, sem ética, surge uma equivocada cadeia de pensamento que conclui que “quem quer virar uma celebridade deverá ser artista!” Assim, somos presenteados por temporadas repletas de espetáculos produzidos para satisfazer o ego de quem conta com um público pouco exigente, que vai ao teatro só para satisfazer a sua necessidade de convívio social.

(Artigo publicado pela revista Tablado, de Brasília)

Vá ao teatro?


Um dia, ouvi de um estudante de teatro: “o teatro perdeu público para as novelas“. Essa é uma questão tão antiga quanto a televisão. Ouvindo, porém, distanciei o pensamento daquela discussão caduca e me voltei para o percurso das desastrosas ações em que o teatro acabou se aprisionando. Perdendo terreno para as novidades do mundo eletrônico, buscou-se o perigoso caminho de trazer para a cena teatral o que se concluiu que agradava à maioria das pessoas.
O que se espera ver na TV? A vida cotidiana em uma trama específica, onde a relação com o telespectador esbarra no voyeurismo. Vemos tramas esticadas por meses, com um tempo semelhante ao que escorre no nosso dia a dia. A TV está certa! E não quero entrar no pantanoso terreno da qualidade, falo apenas da linguagem proposta desde a invenção do mercado das telenovelas. Esta forma de interpretação é apropriada para a TV. Não para o teatro.
Eis o tenebroso equívoco que traz para a cena teatral o distanciamento cada vez maior do seu elemento mais fundamental: a ação dramática. Passamos a ver no teatro um tipo de representação que reflete o modelo da linguagem proposta para a TV e, mais perigoso ainda, passa-se a acreditar que representar no teatro é como representar na TV. E, nós “gente de teatro”, tentamos nos redimir com a exclamação simplista: “no teatro é mais difícil porque é ao vivo”. E seguimos enganados, comparando duas linguagens distintas.
Na linguagem do teatro, onde o tempo é mais concentrado, precisamos nos debruçar sobre o que é essencial, desprezando tudo o que não contribui para a ação dramática. Cada elemento de um espetáculo, cada gesto, pausa, objeto, ação de luz ou música deverá contribuir de maneira objetiva e ao mesmo tempo poética para a revelação do drama. O ator realiza as ações que formam o caráter do personagem que vive o drama revelado neste espaço condensado de tempo. As ações que o ator realiza em cena, cada uma delas, têm de conter o drama. Não se pode desperdiçar as ações deixando-as car

entes de significância. Quando se constrói um espetáculo teatral com maneirismos de televisão, joga-se fora a regra mais fundamental do teatro e surge uma terceira coisa que não é mais teatro, nem é televisão. Uma tentativa desesperada de um vendedor querendo ganhar um mercado que não é seu.
Teatro não é um comércio. Teatro é encontro. Quando vou ao teatro, quero ver teatro.


(Artigo publicado pela revista Tablado ,de Brasília)