terça-feira, 6 de maio de 2008

Pensando em fRaGmento III













"O espectador cego deve ouvir a mordida e a deglutição, se perguntar o que está sendo comido ali, no palco. Quê eles comem? Eles se comem? Mastigar ou engolir. Mastigação, sucção, deglutição. Pedaços de texto devem ser mordidos, maldosamente atacados pelos comedores (lábios, dentes) ; outros pedaços devem ser logo tragados, deglutidos, engolidos, aspirados, absorvidos. Coma, trague, coma, mastigue, pulmoneie de um só trago. Vá, mastigue, triture, canibal! Ai, ai!...

Boa parte do texto deve jorrar num sopro só, sem retomada de fôlego, usando-o até o fim. Gastando tudo. Nada de guardar umas reservinhas, nada de ter medo de perder o fôlego. Parece que é assim que se consegue achar o ritmo, as diversas respirações, atirando-se em queda livre. Nada de cortar tudo, recortar tudo em fatias inteligentes, em fatias inteligíveis - como manda a boa dicção francesa de hoje em dia, na qual o trabalho do ator consiste em recortar seu texto qual salame, acentuar certas palavras, carregá-las de intenções, reproduzindo em suma o exercício de segmentação da palavra que se aprende na escola: frase recortada em sujeito-verbo-predicado, o jogo consistindo apenas em procurar a palavra chave, em sublinhar um membro da frase pra mostrar que se é um ótimo aluno inteligente - enquanto que, enquanto que, enquanto que, a palavra forma antes alguma coisa parecida com um tubo de ar, um cano de esfíncter, uma coluna com descargas irregulares, espasmos, comportas, ondas cortadas, escapamentos, pressão."


(Trecho do livro "Carta aos atores" de Valère Novarina)